sexta-feira, março 24, 2006

 

AS MENINAS, O JORNAL, O LIVRO E O POÉTICO

Uma das coisas que mais me irritam - além da manhã de segunda-feira e das notícias vindas de Brasília, é claro - são essas poesias publicadas em jornais, seja as de ilustres desconhecidos, seja as de (pretensos) medalhões. É muito mais fácil encontrar o poético numa sempre abominável fila do INSS do que nesses versinhos, geralmente sintomas do que o psicólogo social/sociólogo Richard Sennett execrou - em o Declínio do Homem Público: as Tiranias da Intimidade - na sentença certeira, aqui parafraseada: “jogam o coração sangrando em cima de nossa mesa”. Argh, indigesto, não? Mas não parece, porque o que sai, em editoras menores e em tiragens menores ainda, de poesia neste Brasil não é brinquedo. É uma fábula! A quantidade total, desconheço, porém aposto um cafezinho que são, no mínimo, de 80 a 100 por ano no país, fora o que se veicula em blogs (a começar por este), e-mails, postais vendidos em bar, até em CDs caseiros! Agora, tente enviar um copião de seu livrinho de poesias para algumas das grandes editoras do RJ e SP. Esqueça, nos sites das ditas já está ali, mais implacável do que a corrupção no Congresso Nacional: não recebemos originais de poesia, não insista! E o que penso disso, my friend? Ótimo, ainda bem que é assim! Basta o que ouço por aí e felizmente nunca indagado a mim: já leu (sic) o Código Da Vinci? É a baixa qualidade do que se escreve e do que se lê.

O verdadeiro poético

O verdadeiro poético em minha chinelíssima opinião está, no caso apenas do que se divulga em jornais, em matérias como a que saiu há não muito tempo, em duas páginas, num grande diário de Porto Alegre, sobre uma menina, franzina, pobre e dona de olhos tão bonitos e expressivos que a Charlize Theron (olha ela na foto, ai, ai) parodiaria o Patolino e diria diante deles “Oh my god, como sou desprezível!”. A doce garota arriscou o pescoço para salvar seus irmãos menores, enfrentando um incêndio na própria casa. Na página ao lado, o apelo de uma garota de 12 anos, inquilina de um orfanato, pedindo em carta a um juiz para ser adotada apesar da sua idade e da sua cor! Isso é o poético, sem clichê e babaquice impostada. E o que é a poesia? A poesia é o poético (re)trabalhado, com engenho, com artifício, sempre. Ah, isso denota um certo ranço elitista, hã? Não, ranço até pode ser, mas elitista não. É o esforço que deve ser elitista! Ou será que o Santana não afina a guitarra antes de tocá-la?!...

 

A MUSA

Nesta semana, a vida e a obra do pintor Emiliano Di Cavalcanti (1897 - 1976) voltaram à cena, em decorrência da morte, aos 58 anos, de sua musa mulata Marina Montini, sua modelo entre 1969 e 1976. Além do lamento, ao menos de um fato ruim - a morte de uma musa - recuperou-se para o imaginário coletivo brasileiro a genialidade de um cara que tanto quis - e conseguiu - retratar a beleza da mulher brasileira, notadamente a mulata, embora exista um quadro como Nu, com uma mulher branca, exibindo os seios, vestida apenas com uma pele, que é absurdamente lindo. Mais do que estética, Di Cavalcanti é um desses apaixonados pelo Brasil - ao lado de outros gênios como Djanira (Fla-Flu 1975) e Portinari (Retirantes) - que tanto e tão expressivamente desnudaram as alegrias e os dramas de ser brasileiro -, apaixonados esses que parecem faltar hoje não apenas em nossas artes plásticas, mas em tudo! Fechando tais lembranças, ficam a reprodução de Mulata com Pássaro e um poema meu, de 2005, em que comparo Di e Portinari:

DI CAVALCANTI / PORTINARI
(Brasil de Carne e Osso)

A mulata.
A retirante.
A opulência.
A fome.

O que consome.
O que não some.

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