quinta-feira, novembro 23, 2006
DOENÇAS SOCIAIS
Faz uns dois dias que penso nisso. Não queria abordar o assunto, ainda mais aqui num blog denominado Pasárgada, o que evoca uma certa idéia de paraíso, hedonismo e escapismo. Mas não é possível deixar de se comover com a tragédia dessa garota, sim, garota, 21 anos apenas, a modelo Ana Carolina Reston. Não quero tratar do que causou a sua morte, amplamente divulgada e esmiúçada, vítima da anorexia, enfermidade da mente e do corpo cada vez mais alastrada, global (ontem uma jovem comoveu a Argentina, após ser internada em decorrência dessa doença, ela pesando famélicos 28 quilos). O que busco abordar aqui é o estopim desse e de outros fenômenos desgraçadamente atuais, recorrentes: o estopim social das doenças, em particular o desencadeado na esfera do trabalho.
Conforme reportagem de capa da revista Veja desta semana, Ana Carolina passou a ter os sintomas do distúrbio logo após ser advertida, durante uma atividade no Oriente, de que estava obesa. Ela pesava à época 51 quilos distribuídos em 1,70 metro! Esse tipo de pressão, de barbárie é cada vez mais institucionalizado e eclode em toda parte, de diferentes maneiras e não somente no mundo fashion, embora neste tudo pareça ocorrer de forma mais contundente, devido ao seu glamour, exposição midiática e prenhe de tragédias cíclicas (recordo vagamente Gia Caringi, bela, todavia, ao contrário da brasileira Ana, rica e famosa, morta pelo vício em heroína, nos EUA, em 1986). Agora vivemos uma cultura profissional do ‘você não presta’, ‘você não serve’, ‘você está ultrapassado’, ‘você não tem potencial’, todas essas expressões usadas em lugar do funcional ‘você errou’. O sempre brilhante psicólogo social Richard Sennett explora isso de maneira assombrosa em obra sua, lançada neste ano no Brasil, ‘A Cultura do Novo Capitalismo’.
Sennett não leva além do universo do trabalho às análises sobre a incerteza, a instabilidade e a insatisfação que (des)colore a vida de milhões de pessoas. Ele aborda tais questões tendo como cenários as vivências de profissões de alta tecnologia, finanças e o (degradado) serviço público norte-americano. Porém, o autor ressalva que essas perversidades diluem-se, em maior ou menor grau, em todas as ocupações, fato que me faz lembrar uma sentença tristemente célebre de Pierre Bourdieu: ‘a precariedade está em toda a parte’. Poderíamos substituir o termo precariedade por frustração, depressão, vício, alcoolismo, hipocondria, estresse. Ou então pela citação, na postagem logo abaixo, de Sigmund Freud: somos carne, mas devemos ser de ferro. Devemos? Sinistramente, o caso dessa modelo nos permite de maneira extraordinária refletir sobre isso... E achar que algo, vários ‘algos’, aliás, podem começar a ser modificados, contestados. E a partir de nossas próprias vidas.
Por último, ressalva-se que o pesquisador americano não amplia, em sua recente obra, os referidos problemas para outros campos, o doméstico, o interpessoal, o mundo cultural, o lazer, etc. Não era seu objetivo. Entretanto Sennett sugere isso, especialmente quando se refere à obra de outro pensador importante destes tempos, o veterano humanista polonês, radicado na Inglaterra, Zygmunt Bauman, autor de obras como Modernidade Líquida e Amor Líquido. Em ambos, uma preocupação com esse modo de viver fluido, escorregadio, na velocidade do laser, coisa do tipo ‘tocador de MP3’: temos capacidade instrumental de armazenar 10 mil canções, mas talvez utilizaremos as mesmas 20 ou 30 a cada trimestre, semestre. E temos, aqui e ali, uma pessoa em nossa frente, 10 mil coisas para compartilhar ao longo duma vida ou por duas horas, mas preferimos somente ajustar o MP3... Sabe como é, temos dificuldade de conexão! Ah, poderia ser vínculo com o Bush, o Bin Laden ou, mais provável, com o chefe ou o parceiro, parceira rebaixado a um ser hoje insuportável? Sim, poderia. Mas poderia ser a Ana Carolina, que por macabra ironia continua com seu perfil (o comercial) exposto na Web, via Google. Tem tudo ali, altura, cor dos olhos, sapato, menos, claro, o peso... Quiçá, ela descanse em Pasárgada. Rezei por isso. Por uma desconhecida, mas conhecida...
(Matheus Fontella)
Faz uns dois dias que penso nisso. Não queria abordar o assunto, ainda mais aqui num blog denominado Pasárgada, o que evoca uma certa idéia de paraíso, hedonismo e escapismo. Mas não é possível deixar de se comover com a tragédia dessa garota, sim, garota, 21 anos apenas, a modelo Ana Carolina Reston. Não quero tratar do que causou a sua morte, amplamente divulgada e esmiúçada, vítima da anorexia, enfermidade da mente e do corpo cada vez mais alastrada, global (ontem uma jovem comoveu a Argentina, após ser internada em decorrência dessa doença, ela pesando famélicos 28 quilos). O que busco abordar aqui é o estopim desse e de outros fenômenos desgraçadamente atuais, recorrentes: o estopim social das doenças, em particular o desencadeado na esfera do trabalho.
Conforme reportagem de capa da revista Veja desta semana, Ana Carolina passou a ter os sintomas do distúrbio logo após ser advertida, durante uma atividade no Oriente, de que estava obesa. Ela pesava à época 51 quilos distribuídos em 1,70 metro! Esse tipo de pressão, de barbárie é cada vez mais institucionalizado e eclode em toda parte, de diferentes maneiras e não somente no mundo fashion, embora neste tudo pareça ocorrer de forma mais contundente, devido ao seu glamour, exposição midiática e prenhe de tragédias cíclicas (recordo vagamente Gia Caringi, bela, todavia, ao contrário da brasileira Ana, rica e famosa, morta pelo vício em heroína, nos EUA, em 1986). Agora vivemos uma cultura profissional do ‘você não presta’, ‘você não serve’, ‘você está ultrapassado’, ‘você não tem potencial’, todas essas expressões usadas em lugar do funcional ‘você errou’. O sempre brilhante psicólogo social Richard Sennett explora isso de maneira assombrosa em obra sua, lançada neste ano no Brasil, ‘A Cultura do Novo Capitalismo’.
Sennett não leva além do universo do trabalho às análises sobre a incerteza, a instabilidade e a insatisfação que (des)colore a vida de milhões de pessoas. Ele aborda tais questões tendo como cenários as vivências de profissões de alta tecnologia, finanças e o (degradado) serviço público norte-americano. Porém, o autor ressalva que essas perversidades diluem-se, em maior ou menor grau, em todas as ocupações, fato que me faz lembrar uma sentença tristemente célebre de Pierre Bourdieu: ‘a precariedade está em toda a parte’. Poderíamos substituir o termo precariedade por frustração, depressão, vício, alcoolismo, hipocondria, estresse. Ou então pela citação, na postagem logo abaixo, de Sigmund Freud: somos carne, mas devemos ser de ferro. Devemos? Sinistramente, o caso dessa modelo nos permite de maneira extraordinária refletir sobre isso... E achar que algo, vários ‘algos’, aliás, podem começar a ser modificados, contestados. E a partir de nossas próprias vidas.
Por último, ressalva-se que o pesquisador americano não amplia, em sua recente obra, os referidos problemas para outros campos, o doméstico, o interpessoal, o mundo cultural, o lazer, etc. Não era seu objetivo. Entretanto Sennett sugere isso, especialmente quando se refere à obra de outro pensador importante destes tempos, o veterano humanista polonês, radicado na Inglaterra, Zygmunt Bauman, autor de obras como Modernidade Líquida e Amor Líquido. Em ambos, uma preocupação com esse modo de viver fluido, escorregadio, na velocidade do laser, coisa do tipo ‘tocador de MP3’: temos capacidade instrumental de armazenar 10 mil canções, mas talvez utilizaremos as mesmas 20 ou 30 a cada trimestre, semestre. E temos, aqui e ali, uma pessoa em nossa frente, 10 mil coisas para compartilhar ao longo duma vida ou por duas horas, mas preferimos somente ajustar o MP3... Sabe como é, temos dificuldade de conexão! Ah, poderia ser vínculo com o Bush, o Bin Laden ou, mais provável, com o chefe ou o parceiro, parceira rebaixado a um ser hoje insuportável? Sim, poderia. Mas poderia ser a Ana Carolina, que por macabra ironia continua com seu perfil (o comercial) exposto na Web, via Google. Tem tudo ali, altura, cor dos olhos, sapato, menos, claro, o peso... Quiçá, ela descanse em Pasárgada. Rezei por isso. Por uma desconhecida, mas conhecida...
(Matheus Fontella)